quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Sobre a ocupação da Casa da Bruxa e do prédio anexo ao bandejão do Campus de Letras e Artes da UNIRIO:
Apelo ao movimento estudantil pela universalização do direito ao acesso e à produção do conhecimento a partir da experiência em auto-gestão atualmente em curso nesta universidade:

A partir de reuniões e grupos de trabalho realizados com a reitoria e com o DCE (Diretório Central de Estudantes) da UNIRIO, nós que ocupamos a Casa da Bruxa e o prédio anexo ao bandejão do Campus de Letras e Artes da universidade, decidimos elaborar esta nota. Seu objetivo principal é responder a objeções em relação ao uso dos espaços ocupados, bem como a acusações de que as ocupações se tornaram albergues ou simples moradias. Para nós, a posição que nosso corpo ocupa no espaço é política, de modo que, se dormimos neste campo específico, precisamente este ponto precisa ser mais propriamente considerado.
Nós defendemos a proposta de ocupação destes espaços em tempo integral, porque apenas assim as implicações micropolíticas envolvidas em nossa proposta de auto-gestão podem ser efetivamente experimentadas. Entendemos que as restrições morais e econômicas que dificultam e limitam processos de organização coletiva em nossa época, não nos deve impedir de perceber que experiências como estas são decisivas para o desenvolvimento de alternativas em relação ao modelo hegemônico vigente. A construção histórica que justifica a divisão e o uso do espaço em nossa época, afinal, não deve ser simplesmente naturalizada. A autonomia universitária pode e deve ser explorada, nesse sentido, para abrir “brechas nas velhas e novas cercas que produzem e reproduzem [entre nós] as velhas e as novas formas de subordinação”[1]. Por isso, ao falar de auto-gestão, nós fazemos resistência à terceirização de serviços como os de limpeza nesses espaços, e, recordando raízes comuns entre Marx e anarquistas como Bakunin, investimos em processos de livre formação com fazeres que equivalem a diferentes modos de aproximar arte, trabalho e vida. O que talvez para algumas pessoas soe demasiado romântico, outras propõem que se considere com a força de um movimento (contra) cultural de resistência em vias de ascensão.
Não se trata de desejar a criação de um “mundo paralelo”, como alguém disse em reunião um dia. Mas certamente de propor o uso da arte e da filosofia, reconhecendo, na intersecção entre estética e política, tanto as ocupações como o pixo, não apenas como manifestações culturais legítimas, mas como ocasiões para uma apropriação do movimento estudantil, no sentido de alimentar o desenvolvimento de pontos que poderão se conectar a outros dando origem, pelo próprio movimento das pessoas que transitam por estes espaços, a uma rede de caráter transnacional (lembrando que por ocupações como estas passam pessoas vindas de muitas partes). Trata-se assim de forçar os limites da autonomia e da extensão universitária, para aproximar o modelo tradicional de ensino superior do espírito de universidades livres, como a Universidade Nômade: espírito de certo modo encarnado por críticxs da cultura, artistas de rua e malucxs de estrada, que afinal, também cumprem função educadora, por assim dizer, em campo expandido[2].
Estes espaços podem ser muito simples, não apenas porque estas pessoas que estão realmente dispostas à construção de alternativas geralmente não se importam de dormir no chão, mas porque o importante é que sejam espaços experimentais de arte e ciência - a começar pelas sociais -, espaços autônomos, heterotopias libertárias: campos que possibilitem a integração de conhecimentos advindos de diferentes áreas. Isto é mais do que destinar o uso do prédio para centros acadêmicos: é investir na possibilidade de transitar livremente pelas bordas entre os cursos, desfazendo fronteiras e alimentando o desenvolvimento de um amplo movimento que permita, a partir da proposta de auto-gestão, aproximar questões tão diversas quanto a educação livre, a soberania alimentar, o (trans)feminismo, a descolonização, os saberes ancestrais, a permacultura, a agroecologia, a consciência corporal, a pirataria, os softwares livres, o amor livre etc.
Nós não esperamos, com isso, a adesão espontânea de um grande número de pessoas a um conjunto de práticas que exige, no limite, alterar a maneira como se vive. Sabemos que mesmo instituições de ensino que optam por fazer mais formalmente a transição para modelos de educação livres - desescolarizados - passam por um momento de estranhamento e adaptação muitas vezes complicado, e que este pode ser um processo lento. Nosso desejo é que se adote uma política interna de auto-gestão que permita manter nestas ocupações o espírito de compartilhamento e a dinâmica de formação coletiva que já existe nestes espaços, de modo que seja ainda possível preservar a possibilidade de dormir nestes espaços, nos casos em que isso for desejado: assim mantemos em suspenso a questão do uso do espaço público, e levamos para outro nível a discussão acerca do que realmente nos propõe o fenômeno das ocupações de espaços públicos, que afinal, não são fenômenos culturais de nossa época por acaso.
Não pretendemos, com isso, negar que nossas ações são ainda, em muitos sentidos, precárias. Falhamos, por exemplo, na parte de comunicação, para que estudantes e a universidade em geral pudesse perceber mais propriamente a força destas ocupações enquanto experimentos autônomos e movimentos políticos que, ao tratar da cultura indígena e de bioconstrução, por exemplo, aponta alternativas “ancestro-futuristas” para o desenvolvimento estrutural da universidade. Pois se a crise da instituição universitária é particularmente emblemática aqui, sabemos que ela não se restringe à UNIRIO. Por isso, radicalizando a revindicação por autonomia a partir destes espaços, é nosso intuito desenvolver a partir deles experiências que poderão se tornar referências para outras universidades e ocupações de nosso país.
O Bandejão (o refeitório) está fechado, mas nós estamos diariamente fazendo recicles em feiras, sacolões e padarias (não ignoramos o absurdo de um sistema econômico que nos desapropria da terra e encaminha uma quantidade imensa de alimento próprio para o consumo todos os dias para o lixo); estamos nos organizando constantemente para a limpeza e manutenção dos espaços ocupados (algo que o corte de água do prédio anexo ao bandejão dificulta muito); tendo desenvolvido um calendário orgânico, estamos ainda sempre envolvidxs em pesquisas e atividades que envolvem escrita, música, leitura, pintura, exercícios e técnicas de consciência corporal (yoga e malabares, por exemplo)...Nosso envolvimento com plantas é ainda muito tímido, mas já temos nossa horta; e muito em breve, uma rádio livre! Nosso desejo é que estes espaços se tornem algo como estações experimentais de arte e ciência. Por que tantxs estudantes se opõem a isso¿ Estas não são coisas que podem ser simplesmente desprezadas.
Sabemos que para algumas pessoas os planos de uso deste espaço eram outros, mas pedimos para que se considere o que começa a se desenvolver por aqui como uma oportunidade de desvio com o sentido de potencializar as reivindicações políticas do movimento estudantil, tornando-as menos elitistas e mais verdadeiramente públicas.
Agora que estamos sem água há cerca de três meses e em processo decisivo de negociação com a reitoria e com o DCE da UNIRIO, pedimos, para finalizar, a colaboração de todxs. Temos muita carência de materiais, de utensílios de cozinha, e ferramentas para (bio)construção, a livros para estruturação de biblioteca (temos já uma relação encaminhada), almofadas, tintas, tecidos e retroprojetores... Com isso, acreditamos ser possível ocupar estes espaços juntxs, para fazer crescer na universidade um projeto de interesse comum que assegure condições para o desenvolvimento de nossas singularidades; isto é, um projeto em que realmente se possa acreditar.



[1] Para uma Universidade Nômade. Disponível em: http://uninomade.net/wp-content/files_mf/113003120819Para%20uma%20Universidade%20N%C3%B4made.pdf
[2] Cabe, nesse sentido, considerar o discurso crítico de algumas delas:  https://www.youtube.com/watch?v=qw_loNboKO0 (Rafael Lages); https://www.youtube.com/watch?v=NMn_1rQ3sms (Eduardo Marinho).

sábado, 22 de novembro de 2014

Dispersão e concentração - dos lugares onde se realizam a nossa potência de vida

Acredito que seja relativamente sensato deduzir que a "energia vital" de pessoas saudáveis não é, entre uma e outra, tão variável. O que varia é basicamente o lugar para onde essa energia é canalizada, e a medida em que é concentrada. Se somos atletas, focamos nossa potência de vida no trabalho físico do corpo; se somos ficcionistas, focamos nossa energia na elaboração de ficções; se cozinheiros, na elaboração de pratos; se médicos, no tratamento de pacientes; se matemáticos, no desenvolvimento de cálculos, e assim por diante. O fato que desejo considerar, porém, é que nossa vida não se resume às coisas que se supõe que fazemos por aquilo que consideramos ser nosso trabalho, e mesmo aí, de qualquer modo, raramente concentramos toda nossa energia. Cotidianamente, nossa potência de vida se realiza em direções muito variadas e, geralmente, num mesmo instante ela se encontra muito dispersa. Grandes cidades, por exemplo, como sabemos, exigem a capacidade de assimilar muita informação em espaços de tempo muito curtos: carros- motores-luzes-buzinas-conversas-corpos-roupas-olhares...O processamento de diferentes dados sensíveis ocorre geralmente de modo automático, condicionados que estamos ao fluxo de coisas com as quais interagimos ao longo de nossa existência. Deslocados para um campo estranho ao que estamos habituados, como ocorre quando alguém acostumado à vida em grandes cidades encontra-se em meio a uma floresta, por exemplo, nos colocamos em estado de alerta, sem saber exatamente identificar os pontos em que precisaríamos concentrar nossa capacidade de atenção para garantir o desenvolvimento satisfatório de nossa potência de vida. Geralmente, por isso, evitamos este estado de suspensão e preferimos nos mover em terrenos já conhecidos. Nos ditos momentos de "lazer", por exemplo, muitos de nós - os "privilegiados" dentre nós - preferem sentar-se em frente a computadores e abstrair, entre um clique e outro, de acordo com ações já programadas. Embora a articulação dos sentimentos e pensamentos aí envolvidos demandem energia considerável e guardem também a possibilidade de experiências significativas, a nossa potência de vida se realiza em campo "virtual" de maneira muito menos ameaçadora, mais segura, do que em outros, onde estabelecemos com as coisas relações mais diretas. Assim, tendemos a orientar o desenvolvimento de nossa energia de maneira relativamente previsível e calculada, segundo um fluxo contínuo que inclui até mesmo nossa necessidade de comer e dormir; afinal, nossa força não é inesgotável e, de tempos em tempos, é preciso reabastecê-la. Ocorre, porém, que com tantos estímulos e focos de atenção, dedicamos pequenas doses de nossa potência de vida em direções muito diversas e, de tão fragmentada, não resta muito de nossa força de vida para a produção de coisas maiores e possivelmente mais significativas; coisas que exigiriam maior capacidade de concentração, como a arte. Este é certamente um interesse da indústria cultural: que o foco de nossas atenções sejam previsíveis e que nossas realizações cotidianas sejam frívolas. Permanece com isso verdadeiro o que disse Godard em Je vous salue Sarajevo (disponível no youtube): que em nossas vidas a cultura é regra, e a arte, exceção.


Da possibilidade de deter-nos na tendência à instrumentalização dominante

A mecanização de nosso pensamento se expressa no hábito do julgamento, quando muito rapidamente dissecamos e esvaziamos os objetos de nossa percepção até que cessem de ser admiráveis. Afinal, enquanto admiramos qualquer coisa, nos detemos no foco de nossa apreciação e nos vemos impedidos de acompanhar o fluxo que se coloca em nossas próprias vidas como um imperativo "natural". Quando sentimos que podemos atribuir conceitos e classificações que nos permitem compreender qualquer coisa em definitivo, domesticamos o mundo, e eliminamos a possibilidade de arte em nossa experiência. É assim que para problemas e enigmas, em geral, aplicamos nosso conhecimento de modo que as coisas todas possam ser devidamente instrumentalizadas. Mais do que um hábito, a razão técnica e instrumental é uma exigência de nosso modo de vida, pois ele só é possível enquanto muito rapidamente, e de acordo com interesses, julgamos compreender o que deixamos de apreciar. Compreender e "encaixotar", afinal, nos coloca na confortável posição de operadores - aqueles que detém o controle. Confortável, porém, apenas pq assim mantemos o fluxo; fluxo que intimamente sabemos ser necessário mudar. Pois que são na realidade estas coisas que julgamos compreender de modo tão definitivo? A que espécie de coisas estamos cegos seguindo o fluxo de nossa vida cotidiana? A estas coisas apontava Merleau-Ponty quando dizia, em O Olho e o Espírito, que devemos reaprender a ver. Pois se na realidade atentamos aos objetos de nossa percepção, observamos neles o inapreensível que caracteriza a própria experiência da arte. Reconhecer a arte em nossa existência é por isso libertar os objetos de nossa experiência: por esta razão, a educação estética, ao propor a compreensão da vida como obra de arte, é uma proposta de educação libertária.

Nada disso é novo. É, na realidade, algo que já foi dito de diferentes formas pelas mais diversas culturas, e em muitas diferentes épocas (no oriente e no ocidente; na antiguidade e na modernidade; entre os povos originários e os "civilizados"). E no entanto permanecemos céticos, como se nada disso fosse sério, ou como se não fosse com a gente. Os românticos foram provavelmente os que disseram estas coisas de modo mais próximo à forma como eu mesmo digo. Natural, por isso mesmo, que estas ideias sejam por algumas pessoas consideradas ingênuas ou utópicas, pois a própria tradição romântica, afinal, costuma ser assim considerada. Se porém nos afastamos de estereótipos, vemos que a tradição romântica impulsionou uma série de ações concretas cujos efeitos não podem ser ignorados. Não se trata, portanto, de sugerir que algo como um modo "mais encantado" de pensar e perceber a existência pode simplesmente mudar o mundo, mas sim de reconhecer inúmeras práticas que de fato se estabelecem ao redor do mundo a partir de princípios mais apreciativos e menos mecânicos. São experimentos que buscam estabelecer condições para que nosso tempo e o tipo de relações que estabelecemos uns com os outros e com o meio que nos cerca seja outro: espaços de arte; espaços autônomos; ecovilas; gift economy; desescolarização...Experiências geralmente auto-gestionárias que reúnem artistas de todas as áreas do conhecimento - pessoas dispostas a entrar num processo intenso de desconstrução e (re)construção, para iniciar o processo de transformação que desejam ver ocorrer na sociedade a partir delas mesmas. Todas estas experiências e espaços podem ser considerados centros difusores de um processo de transformação real em nossa cultura, para que as diferenças entre nós sejam menos agressivas, e para que assim possamos desenvolver vínculos afetivos mais amplamente satisfatórios uns com os outros - a simbiose como um modelo de relação, como propôs Kropotkin. Nada disso é utopia, portanto. É possível trabalhar, desde o campo das ideias, na produção de espaços heterotópicos, como propôs Michel Foucault: "espécies de utopias realizáveis". Com vários espaços assim surgindo em nosso meio, que seria de nossa cultura!? Pode alguém pagar pra ver?

cooperativapoetica@riseup.net

breves divagações sobre a história e os limites de nossa capacidade de agência

É bem verdade que a história é determinante em relação a forma como nossas vidas se desenvolvem. Por outro lado, porém, temos um poder inegável a considerar sobre o modo como a nossa potência de vida se estabelece, e somos assim também determinantes em relação à história.

Desde o princípio da nossa constituição física, somos preparados química e biologicamente para processar estímulos de maneira seletiva, e (re)ativa. Com boa formação, esta inteligência poderá ser verificada para além dos processos celulares, no uso de nossa razão. É por ela que nossa autonomia pode ser reivindicada e, com ela, a autoria dos processos dos quais nos achamos responsáveis ao longo de nossas vidas. Em maior ou menor grau, toda escolha é crítica e, antes de uma determinação externa, é uma apropriação daquilo que é proposto (socialmente, culturalmente, historicamente, ou mesmo biologicamente).

Por mais críticos e ativos que nos pretendamos, porém, nossa operação está necessariamente limitada às possibilidades conhecidas ou disponíveis – nossa liberdade, desse modo, é condicionada. Se nos apresentam o preto e o branco, podemos apenas optar pela mistura ou pelo vermelho, por exemplo, se tivermos estas possibilidades em nosso repertório; do contrário, o exercício de nossa liberdade estará restrito à escolha do preto ou do branco. Nesse sentido, se identificamos um problema na forma como as vidas tem se constituído na contemporaneidade, este problema deve estar relacionado à pobreza daquilo que nossa cultura tem dado a conhecer. Uma das principais razões para isso é o predomínio de uma razão instrumental que, no capitalismo industrial, se acha responsável pelo progresso da vida mediante o uso interesseiro do meio. É esse interesse que coloca numa base muito pouco distinta toda a fartura de escolhas de que dispõe a cultura contemporânea. É por esta variedade que temos a sensação de liberdade, e por ela somos facilmente seduzidos e distraídos da verdade de que praticamente tudo que se nos apresentam são pretos e brancos.
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quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Fragmentos

As razões da escrita

Escrevo para que minhas ideias não morram comigo. Como que para deixar registros dos lugares por onde pairou meu pensamento. Para que minha experiência sirva para clarear alguns aspectos do Espírito em mim e para além de mim. Pode ser que não seja grande coisa, mas não importa; às vezes o sentimento de conexão é tanto, que é como se o estado de coisas no mundo dependesse do modo como as ideias se desenvolvem por aqui – como se na realização deste trabalho tivesse poder de interferência sobre aquela parte coletiva de nós mesmxs de que falaram pessoas como Jung.
(...)
Temo ser mal compreendido. Que me achem pretensioso, e que na apreciação dessas coisas que digo se limitem ao que considerarem ser meu ego. Por outro lado, não quero que esse temor reduza o que acredito ser minha potência. Na realidade, trato do espírito, e sei que o meu pensamento não é melhor que o de ninguém; eu apenas tenho dedicado mais tempo do que o habitual em nossa época para desenvolvê-lo. Por que como artista, estou muito próximo do vagabundo, e desejo continuar por aí, pois o trabalho de arte importa, mesmo que pareça completamente inútil...

*
Organização

É relativamente recente o momento histórico que nos permite considerar como podemos agir enquanto grupo. Há pouco tempo, a estrutura dos comportamentos era tão rígida que certas condutas não eram questionadas. A mulher, por exemplo, não podia estudar, nem escolher com quem casaria...Somente em condições muito particulares poderia dar vazão a vontades que fossem as suas próprias, e não as de seu pai ou marido. Hoje a situação é outra. Ao menos na maior parte dos lugares, mulheres podem estudar, trabalhar e escolher com quem vão casar, se vão casar; quando e de que forma serão mães, se serão mães... Não podemos ser ingênuxs, porém, de pensar que agora as coisas são perfeitas, ou que devem permanecer exatamente como estão, simplesmente porque em certos aspectos elas estão melhores do que há tempos atrás. Tanto para as mulheres quanto para além delas, inúmeras pessoas continuam sendo vítimas de violência. Penso não apenas nas pessoas que geralmente habitam as margens de nossa cultura, como se dela não fizessem parte: pobres, negrxs, índios, homossexuais, transexuais, transgêneros, mas também na estrutura autoritária que permanece governando com rigidez a vida das pessoas no trabalho, por exemplo. O fato é que em qualquer caso, pelo modo como a violência é naturalizada, muitas vezes ela nem chega a ser por muitos reconhecida, especialmente, eu diria, por aqueles que a praticam – todos nós nos momentos em que somos autoritários. Se podemos porém admitir, com todas as diferenças entre nós, uma unidade, e se atribuímos a ela uma significação superior - a meu ver o que permite a ideia de Deus e do Espírito - então deixa de ser sensato que haja medo na relação entre diferentes, pois já isso configura violência dependendo do modo como inibe a singularidade da forma como a potência de vida se manifesta em cada parte. A realização da nossa potência de vida deve ser sem limites, porque é importante que vivendo sejamos todos livres. Como isso é possível? Pela arte. Pois se mantemos desperta a consciência de que as coisas podem ser de outro modo, afinal, nossa experiência de vida é sempre experiência de transformação, então podemos nos servir de nosso conhecimento histórico, assim como de nossa imaginação criativa, para nos organizar e criar um presente sempre diverso; inspiradxs, talvez, na combinação de nossas melhores ideias de passado e de futuro, assim como nas ideias que temos de como foram e são outras culturas. Alguém tem dúvida de que na relação com a terra, por exemplo, temos muito o que aprender com os índios? A inteligência industrial do homem branco, afinal, ao mesmo tempo em que foi responsável pelo aumento da produção de certos produtos, foi responsável por uma série de catástrofes... Se a vida é experiência de transformação, cabe reconhecer que ao longo da história nem todas as transformações tiveram saldo positivo. Tanto que muitas coisas que em outras épocas foram consideradas progresso, hoje são reconsideradas. Não que devamos buscar uma espécie de retorno a um estado perdido, uma condição passada, mas sim recuperar saberes que a violência naturalizada no passado não nos permitiu enxergar.

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A morte

Para a realização da nossa potência de vida, nem mesmo a morte deve ser um limite. Isso pode apenas ser concebido se percebemos sem tantos temores que vivendo vamos naturalmente morrendo, e que podemos viver mais e melhor se atentamos ao modo como temos morrido. Podemos não reconhecer as coisas desse modo, mas nossa cultura tem seus ritos de morte. Reconhecê-los nos permitiria propor que se tornem outros, o que certamente alteraria o modo como estamos vivendo. Aprenderíamos a viver com menos medo da morte, e passaríamos a aceita-la, talvez, como quem vive para ela.

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Festa e política

Dia desses vi gente “engajada” criticando “festas apolíticas”. Fiquei pensando se isso existe. Festa de verdade reúne gente em torno da arte, tem música e dança, pelo menos...só por isso, nenhuma festa é propriamente apolítica. É claro que o discurso político de uma festa em ambiente fechado, onde os que entram são selecionados pelo valor de entrada, é muito distinto daquele de uma dessas festas que ocorrem em espaços públicos, e q são gratuitas. No fim, havendo opções, cabe a cada um de nós considerar quais meios frequentar e q discursos endossar: nosso mundo vai se criando a partir dessas decisões.

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A realidade do mundo

O mundo não é isso de que nos falam os telejornais. O mundo tem a dimensão de nossa experiência. É preciso recobrá-la para torna-la mais significativa: que experiência de fato temos do mundo?

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Considerações muito gerais sobre a loucura e os limites da normalidade

Neste texto falaremos de loucura e de normalidade como atribuições mais ou menos genéricas a certos tipos de comportamento. Não falaremos do louco, nem do sujeito normal, portanto, pois isto seria como fixar e julgar compreender o todo de um ser qualquer por meros recortes. Nosso objetivo é questionar em que medida a normalidade é realmente desejável, e investigar o que podem ser atos de loucura.

I.

Em suas atribuições mais comuns, a loucura é compreendida como ausência de lucidez e clareza, como insanidade, e portanto, como ausência de saúde - no caso, saúde mental.

A normalidade, por oposição, sugere as condições propícias para a lucidez, para a clareza, para a sanidade, e, portanto, para a saúde.

A loucura descreve o comportamento confuso, obscuro, e débil em relação ao que seria considerado normal em uma dada situação. A aparente ausência de nexo entre os sentidos que a loucura traz à tona não permite muitas vezes o reconhecimento de qualquer espécie de ordem. Ela coloca em questão, com isso, mais do que o estado psíquico de alguém, a própria capacidade de compreensão daquele que avalia e faz o diagnóstico. A loucura revela uma espécie de desconexão em relação à concepção mais habitual de realidade num determinado caso, e é geralmente uma atribuição direcionada a alguém que se revela incapaz, ou inapto a integrar o meio que habita de maneira construtiva. Por vezes, com efeito, a loucura desestabiliza e desintegra a própria ideia de normalidade, trazendo à tona o caótico, o descontínuo, e o desordenado.

A normalidade, por outro lado, é adjetivação que se atribui ao comportamento que se encontra adequado à norma. Ela revela adequação à lógica de seu próprio meio. É, por assim dizer, o comportamento esperado. Comportamento que está de acordo com as ordens estabelecidas, e que assim, não parece representar qualquer ameaça ou risco.

Se consideramos, porém, que a saúde interessa apenas na medida em que permite desenvolver e usufruir nossa potência de vida, e neste processo, enquanto elemento capaz de proporcionar prazer, podemos considerar que o comportamento normal, de acordo com o esperado, está muitas vezes distante das condições que permitem saúde. Com efeito, o mais comum em nossa época é que o prazer se dê nos desvios das normas, quando assumimos riscos, e escapamos ao tédio do comportamento previsível. Assumindo que desejamos muitas vezes permanecer nas margens, como exceções às regras, nos aproximamos então do que seria a loucura para, paradoxalmente, manter a sanidade.

Afinal, se levamos em conta as contradições, as guerras, todo o sofrimento e miséria relacionados à ordem social, em que medida a lucidez pode ser considerada uma característica de quem se adequa às normas¿ Que clareza pode haver naquele que automatiza seu próprio comportamento, mecânico, condicionado, e inconsciente - pois todas estas coisas envolvem o comportamento normativo -, atuando como uma espécie de engrenagem a favor de instituições responsáveis pelo que, de fato, pela própria alienação necessária para a manutenção de todo esse sistema, mal pode ser conhecido¿

Descobrir a possibilidade de prazer e de saúde nos desvios é um primeiro passo para fazer as pazes com o caos em nós mesmos, pois a partir daí podemos lançar luzes sobre as nossas sombras - as partes de nós que são causa de problemas quando escapamos às normas, partes que geralmente repreendemos-, percebendo-as de outras formas. Podemos compreender a partir daí a potência revolucionária, espiritualmente libertadora, do desajuste, ainda que isso acarrete em desobediência - comportamentos não previsíveis: uma espécie de "loucura" bem apropriada.

II.

Poucos, porém, são os que assumem seus desajustes com prazer, e experimentam anormalidades com lucidez. Na maior parte dos casos, a anormalidade é causa mais ou menos imediata de mal-estar, sofrimento e doenças diversas. Por esta razão, o sentimento de inadequação e desajuste costuma ser combatido com terapias e medicamentos de diversos tipos, e também com tentativas de ajuste a nível de aparência, seja em academias de musculação, em lojas de produtos e acessórios, ou em clínicas cirúrgicas. Tudo ocorre como se as norma sociais, por seus sentidos conhecidos e supostamente seguros, indicasse uma espécie de ideal que tivesse de ser de algum modo correspondido, e como se o louco hipotético fosse assim identificado, estigmatizado, por ver-se daí em certas ocasiões desligado: ele não repreende impulsos e vontades que, segundo as normas, deveria.

Infinitamente mais arriscada e incerta do que a normalidade, a loucura pode nos parecer muito mais excitante do que a normalidade, particularmente pela promessa de campos imprevisíveis a desbravar. Se desejamos reivindicar estas linhas de conduta consideradas “anormais”, as quais estariam de acordo com a vontades inadequadas de sujeitos “desajustados”, precisamos verificar as condições mediante as quais elas seriam possíveis. Assim podemos desintegrar a própria ideia de normalidade que ainda vigora - talvez de modo já não tão unitário, é verdade, mas ainda insuficientemente diverso.

Para isso, devemos nos assegurar dos sentidos de nossas loucuras individuais. Faremos isso reconhecendo nelas seu caráter político particular, e reivindicando, a partir daí, o direito à inadequação, ao desajuste, e à singularidade, enfim. Isto significa investir na possibilidade de produção de diferenças, não pelas diferenças apenas, mas pela necessidade de transformação via diversificação de um meio que se encontra, por diversos fatores, homogeneizado. Pois enquanto a diversificação é um produto da afirmação de potências de vida singulares, a homogeneização é fruto da potência de morte.

III.

A loucura sugere distância em relação à normalidade. A esta distância é possível vislumbrar, geralmente com algum temor, a possibilidade de encarnar, fazer existir em definitivo, outra coisa - algo diferente da norma - ainda que não se saiba bem ao certo o que esta outra coisa seria. Pois afinal, a loucura, como já dissemos, nem sempre tem sua ordem propriamente identificada, e geralmente se apresenta, precisamente, como sem ordem, como confusão. Embora toda loucura dê pistas de seus ordenamentos mais gerais, principalmente se consideramos o histórico do sujeito em questão, poucas são as pessoas que se dispõe a colocar estes ordenamentos em relação às ordens mais habituais, aquelas relativas às normas, para que então as eventuais loucuras possam ser mais propriamente compreendidas. Este tipo de articulação, afinal, requer alguma lucidez – capacidade de contato suficientemente íntimo para estabelecer relações dialógicas entre norma e loucura.

Ao considerar a possibilidade de romper normas propondo ordens diversas das mais habituais, tenho em mente a produção de espaços heterotópicos - “espécies de utopias realizáveis”, como propõe Foucault. Penso, basicamente, no desejo poético-filosófico de tomar a vida como obra de arte, como queria Nietzsche, por exemplo. Não ignoro, porém, que Hitler e o holocausto podem também ser compreendidos nessa chave. Campos de concentração, como os de Auschwitz, podem certamente ser considerados espaços heterotópicos do tipo que, para gente como o conhecido ditador, aproximariam a vida (a sua e a das pessoas consideradas de raça ariana) do estado da arte. Hoje, em retrospecto, sua “loucura”, pela forma como rompeu com o que eram os discursos normativos de sua época, não precisa ser sublinhada. O ditador, porém, deixou amplos registros de sua capacidade de dialogar com as condições “normais” de seu período e de argumentar a favor do projeto de transformação que propôs; documentos que nos servem como prova de sua perversa lucidez. É claro que suas ideias traduzem aspectos do Espírito daquele período, mas isso não nos deve impedir de reconhecer o poder de persuasão de seu discurso, particularmente pela forma como foi assimilado pelos alemães à época. O grande medo da loucura, o sentimento de perigo em relação à diferença, assim como a tendência à segurança da normalidade (os códigos a que estamos mais habituados), encontram sua justificativa em exemplos como este. Pois na medida em que a loucura traz consigo a possibilidade de outras ordens, ela guarda a possibilidade de desestabilização da normalidade, o que representa um risco. Daí podemos pensar problemas como a xenofobía, e também a conotação negativa do próprio termo "loucura" - afinal, indicativo de um quadro patológico e de uma postura defensiva em relação ao que é assim nomeado. Pois se bem de perto se revelam as razões particulares do que a princípio pode nos parecer “loucura”, e se assim podemos contemplar nela uma forma muito particular de lucidez, seus sentidos podem nos parecer sedutores a ponto de tornar definitivo o câmbio de perspectivas. A sensação de vertigem que geralmente acompanha o sentimento de saída das linhas da normalidade sugere que, de fato, há um processo de transformação envolvido na possibilidade de acompanhar as direções que ela indica; e se ela indica uma real possibilidade de transformação, quem sabe ao certo onde podemos parar¿ O que nossas eventuais loucuras podem fazer de nós mesmos?

O medo da loucura revela o medo de cair num abismo por um salto da razão no desconhecido. Mas é também possível pensar que já estamos em abismos, e o que nos parece loucura é, na realidade, a própria salvação. O medo, de qualquer modo, é o medo do desconhecido; o medo do novo; o medo de que nos preserva o recuo que nos mantém em seguro acordo com a “normalidade”, afinal, conservadora. Se nos cansamos, porém, do mesmo, e estamos decididos a encorajar a identificação de outras ordens, é prudente questionar, para não repetirmos crimes como aqueles de outras épocas, que outras ordens serão estas¿
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Instruções:
Facultar a possibilidade de identificação de outras ordens, trabalhando na produção de espaços autônomos onde o caos possa ser experimentado de outras formas; para que outras ordens sejam propostas. Assegurar que estes espaços sejam compreendidos como espaços de arte e ter com clareza a noção da arte como "experiência de suspensão de opostos" (ver o Espírito na arte e na filosofia), para que então a diferença possa se desenvolver livremente, sem qualquer forma de oposição e, por conseguinte, autoritarismo.

Observações:

A linguagem, compreendida como o conjunto de formas de que nos utilizamos para nos fazer entender uns aos outros, se estabelece de acordo com ordens relativamente específicas. O sentimento de inadequação em relação à linguagem no trabalho de comunicação de nossas ideias é, por isso, bastante comum: ordens mais verdadeiramente originais em relação às mais habituais requerem outras formas de serem expressas; a elaboração destas formas faz a arte.

Em parte é possível pensar na arte como “cura” para males como a esquizofrenia, mas isso é pobre em relação ao que esse paralelo nos permite conceber. Nós não desejamos o silenciamento de um fenômeno qualquer que ocasione distanciamento em relação as normas, mas, pelo contrário, o desenvolvimento deste fenômeno para que a partir daí outras ordens possam ser identificadas – ordens mais livres, mais diversas e mais de acordo com potências de vida singulares.

Historicamente, a arte é o lugar onde se concentra as realizações mais apreciáveis de indivíduos desajustados em relação às ordens ditas normais. Isso é tanto mais verdadeiro quando se percebe quão pouco admirável torna-se a normalidade com o desenvolvimento da burguesia e do sistema capitalista durante a modernidade, e quão confortável foi para ela a invenção de um campo autônomo para abrigar experiências admiráveis. Felizmente, a arte não permaneceu aí por muito tempo.

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

A primazia do sensível e a experiência do presente contínuo

A percepção do que consideramos ser a realidade depende de nossa capacidade reflexiva de processar estímulos sensíveis. Como este processamento ocorre na relação contínua que estabelecemos com as coisas do mundo através de nossos sentidos e sistemas receptores, podemos considerar que tudo aquilo que percebemos existir no mundo sensível existe, enquanto percebemos, em nossa sensibilidade. Se a nossa sensibilidade se estende ao mundo através de nossos sentidos reflexivos e a “realidade” depende assim de nosso contato direto com as coisas do mundo, as coisas que julgamos existir num dado momento fora do alcance de nossa percepção sensível são “irrealidades” - tais como memórias, crenças, imaginações, abstrações e suposições –, algumas das quais se manifestam na realidade de nossa sensibilidade sob a forma de sentimentos e sensações que nem sempre reconhecemos com clareza. Mas enquanto alguns destes “irreais” podem parecer obscuros ou incertos, outros nos parecem lógicos e confiáveis, de modo que é possível dizer que toda possibilidade de conhecimento depende dessas nossas “irrealidades” particulares, algumas das quais estatisticamente comprovadas dentro dos limites de nossa experiência sensível. A fonte última deste conhecimento é a percepção, pois o plano sensível é o único âmbito comum de nossa existência, e só por ele toda nossa “irrealidade” se integra ao que compreendemos como o mundo real, embora a ideia de um “mundo real” para além da nossa percepção individual seja já uma abstração e, nesse sentido, um “irreal”. Esta possibilidade de integração de “irreais” a partir do sensível nos permite generalizações, sistematizações, compreensões, e, no limite, o desenvolvimento de coisas como a linguagem e a ciência, por exemplo, e não há nada que se nos apresente aos sentidos sem que conectemos a “irreais” pretendendo compreender os objetos de nossa percepção. Isto, porém, ocorre numa esfera muito limitada, e nunca de modo absoluto, pois a compreensão total dos objetos de nossa percepção será sempre um “irreal”, algo como uma mera ideia, pois ao ver um lado do objeto, perco o outro; ao me distanciar para observar o todo telescópico, perco a proximidade microscópica; e mesmo que acreditasse que o esgotamento dos modos de percepção de um objeto fosse possível, ele dependeria de tempos distintos, e o tempo é já uma abstração, e portanto um “irreal”. Aquilo que existe é sempre pontual e infinitamente extensivo em sua parcialidade – é presente contínuo. Seríamos no entanto como bebês que assistem passíveis à gênese assustadora do mundo a cada instante, não fosse essa nossa capacidade de efetuar sínteses a partir da parcialidade de nossas experiências e a partir delas julgar que conhecemos os objetos de nossa percepção. Com efeito, nos surpreendemos muito pouco depois de adultos, pois nossas vidas se desenvolvem de tal forma padronizada que frequentemente julgamos que as coisas se repetem e que por se repetirem, já conhecemos todas as coisas. Nos valemos convictos de “irreais” para instrumentalizar toda a existência então normalizada, sem que no entanto a percebamos em sua realidade originária. Somos treinados para fazer cálculos e temos toda a sensibilidade engessada.


Quando se fala das cisões ou dissociações da modernidade entre coisas como matéria e espírito, ou corpo e mente, razão e sensibilidade, sujeito e objeto -, isso não é nada de muito abstrato. Basta considerar os momentos em que o foco de nossa atenção se distancia e desliga dos dados de nossa percepção, e imerge nos “irreais” obscuros de nossa imaginação ou de nossa memória abstraente. Antes, basta considerar a desconexão entre o lugar do corpo-sujeito e o lugar do pensamento-objeto na própria diferenciação proposta aqui entre um “irreal” mental, e um real sensível. Ora, se fosse possível partir do problema já resolvido, ele já não seria um problema. Assim, ao mesmo tempo em que o diagnóstico afirma a dissociação, ele o reconhece - o que se expressa nas aspas - pretendendo constituir um movimento na direção de sua superação.

É evidente que nossa capacidade de abstração não é negativa. Não se trata de recomendar sua supressão na direção do sensível, como se por certo desencantamento em relação à modernidade fosse possível uma espécie de retorno à uma condição primitiva perdida, e muitas vezes idealizada, ou como se os pensamentos tivessem de se conformar aos dados sensíveis do presente, o que muitas vezes se procura à base médica. Sem certa capacidade de abstração pessoal, mesmo a escrita e a leitura seriam impossíveis, não teríamos repertórios que nos permitiriam a identificação das letras, nem meios para articular as palavras e os sentidos que vem antes aos que vem depois. Esta capacidade de construir significados e sentidos a partir dos “irreais” fundados em nossa sensibilidade é o que nos difere dos demais animais, e o que está na origem de fenômenos modernos tão distintos quanto o individualismo, a ciência, e a arte - algo que portanto não pode ser simplesmente suspenso ou ignorado. O cultivo de nossa “irrealidade” pessoal pode ser admitido em contrariedade às dissociações e cisões da modernidade, pois ao invés de conduzir à perda de contato com o mundo sensível, ele, inversamente, o constitui: antes então da supressão de nossa “irrealidade”, a busca da coincidência no mundo sensível. Isto ocorre quando as qualidades reais do nosso corpo ativo nos levam a descobrir os correspondentes imediatos de nossas “irrealidades” no mundo sensível, de modo que elas cessam de existir como “irrealidades”, e fundem-se ao real sensível. Isso de certo modo ocorre aqui, pois se penso essas coisas, escrevo para abstrair colado ao mundo sensível. A realidade do pensamento se expressa na qualidade sensível da escrita ou da fala, assim como o sofrimento se torna dor e lágrima, e a música, na dança, movimento. É verdade que, talvez, por não ser tão bom escritor, há alguma distância entre o pensamento e a escrita, mas nos momentos de maior inspiração ambas as coisas coincidem, o pensamento escreve, a escrita é pensante, e toda minha “irrealidade” se realiza. Nessa coincidência, a fala falante, e não falada, transforma aquilo que era mera potência na imaginação ou no pensamento em coisa real, a ponto de ser algo como um pensamento audível. Esse processo envolve assim certa transparência, no sentido de que o “irreal” transborda sem reservas no real sensível. Ora, é bonito ver num trabalho de arte a realização de um irreal, e é muito mais do que apenas bonito se ele permite a realização de nossa irrealidade.

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Embora seja verdade que nenhum estímulo seja verdadeiramente o mesmo, sentimos ser evidente que nem todo estímulo precisa ser verificado como se fosse totalmente novo. Não precisamos sempre nos aproximar do fogo, por exemplo, para saber que ele queima. É, portanto, a partir do que sentimos ser, por nossa própria experiência, seguro e conhecido que nos conformamos ao que nos parece a realidade de nossas vidas, e a partir daí operamos. Por isso atribuímos à nossa percepção da realidade o caráter de verdade, embora muito constantemente nos enganemos. Quando por exemplo compreendemos um estímulo de uma forma específica sem achar necessário buscar formas mais rigorosas de verificação, e erramos: do instante em que penso ter ouvido a voz de minha mãe, até o instante em que descubro na realidade não tratar-se dela, o que ocorre é uma ruptura com a ideia de realidade que compreendo ser verdadeira pela experiência dos meus sentidos. Tão logo nos sentimos enganados ocorre a substituição de uma idéia de realidade por outra, esta sim acreditada como verdadeira: não era minha mãe.

A atribuição de valor de verdade à realidade precisa ser suspensa pra que seu caráter plástico seja evidenciado pela própria dimensão do possível. Claro que todo o possível da realidade jamais poderá ser totalmente apreendido pelo próprio movimento constante e nunca repetido da existência, mas é importante, de todo modo, estar sempre aberto a sua consideração. Não é que devamos passar a buscar comprovação de que o fogo queima a cada vez que nos for dada à intuição, pela sensibilidade, a existência do fogo. Trata-se antes de manter em suspenso o que se pensa saber pela experiência: antes de deduzir à distância segura a queimadura, sentir o calor. Manter a consciência desperta e receptiva envolve uma suspensão do supostamente conhecido, e, portanto, dos preconceitos, dos hábitos, dos costumes, e da cultura de modo geral.

terça-feira, 20 de agosto de 2013